Morre o cartunista Jaguar, fundador de ‘O Pasquim’, aos 93 anos


Jaguar, cartunista e um dos fundadores do semanário O Pasquim, morreu aos 93 anos de idade no Rio de Janeiro. A morte foi confirmada ao jornal O Globo pela viúva de Jaguar, Celia Regina Pierantoni, neste domingo, 24.

Nascido no Rio de Janeiro como Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, já dava mostras de que seria diferenciado no próprio dia do nascimento: 29 de fevereiro de 1932, um ano bissexto. Deixou a capital do País aos três anos de idade, quando seu pai, funcionário do Banco do Brasil, foi transferido para Juiz de Fora – recomendação de um pediatra para ajudar com a asma de Jaguar. Depois, o banco enviou-o para Santos, onde o jovem fez o primário e o ginásio. Por volta dos 15, pôde, enfim, voltar ao Rio.

“De carioca autêntico eu não tenho nada. Eu simplesmente curto o Rio como se fosse um cara de fora”, explicava o ex-morador de bairros como Lapa, Copacabana e Leblon. Orgulhoso boêmio – jurava que chegou a tomar 50 latinhas de cerveja num único dia – foi um dos fundadores da Banda de Ipanema, que juntava jornalistas, escritores, artistas e cartunistas, e até hoje existe como bloco do carnaval carioca.

Os livros de Jaguar

Foi autor de dois livros. Ipanema – Se Não Me Falha a Memória (2000), abordava suas lembranças do bairro, em especial do que chamava de “anos gloriosos”, ou seja, as décadas de 1960 e 1970. “Eu quis desistir [de escrever a obra], mas não pude porque já tinha bebido o dinheiro do adiantamento. Mudei [de Ipanema] porque depois da meia-noite já estava tudo fechado, e no Leblon ainda dá pra brincar de boêmia”, contava num evento de lançamento em São Paulo. Já Confesso Que Bebi (2001) era um compilado com suas histórias pessoais e sua peregrinação pelos cardápios dos bares cariocas.

Desenhava desde a época de menino, mas “pessimamente”. “Aliás, desenho mal até hoje, é que eu engano muito”, contava em longa entrevista à Associação Brasileira de Imprensa (ABI) em 2009. “Eu detesto desenhar! Se um dia eu puder ou tiver que parar de desenhar, não desenho mais. Minha única inspiração é a seguinte: ‘Eu tenho que entregar a porra do desenho!’ [Risos]. Se não, eles não me pagam…” , brincava, alegando “não ter saco para personagens” ou “paciência para história em quadrinhos”.

Os personagens de Jaguar

Mesmo diante dessa ‘má vontade’ surgiram personagens marcantes. Entre os principais, o ratinho Sig [alusão a Sigmund Freud], um dos símbolos do Pasquim e apaixonado por mulheres como Odete Lara e Tânia Scher. Sua origem remete ao lançamento da cerveja Skol no Brasil, quando o publicitário Zequinha Castro Neves pediu que Jaguar desenhasse uma história para marcar a ocasião. Surgia o Chopnics, mistura da palavra “chopp” com o movimento “beatniks”, tirinha estrelada pelo personagem BD, o Capitão Ipanema. A inspiração era o amigo Hugo Bidê, que, reza a lenda, levava um ratinho branco para os bares. O roedor ganhou uma versão em desenho, o Sig, e permaneceu mesmo após o fim do Chopnics, se tornando a figura mais frequente nas páginas do Pasquim por anos.

Gastão, o Vomitador, fez sucesso com as inúmeras ocasiões em que passou mal e pôs tudo para fora ao se deparar com os absurdos do noticiário. Em entrevista à Folha de S. Paulo, em 2015, Jaguar relembrou que o personagem surgiu “na entrevista que O Pasquim fez com Carlos Manga, publicada no número 153 (julho/1972). Nela, Manga confessou um crime hediondo: ele foi o inventor do júri de televisão. Ilustrei sua declaração com o Gastão vomitando. Gastão teve vida breve. Como não sabia fazer outra coisa além de vomitar, enjoei de desenhá-lo e o despedi”.

Havia também Bóris, o ‘Homem-Tronco’ personagem sem pernas que saía por aí ‘pela metade’, em um carrinho quadrado, e o protagonista de Átila, Você É Bárbaro, primeiro livro lançado por Jaguar, em 1968.

Teve seu primeiro trabalho publicado na Penúltima Hora, seção de Leon Eliachar no jornal Última Hora. Também naqueles tempos, ao mostrar alguns desenhos para Borjalo na Manchete, recebeu um conselho: “Eu assinava Sérgio Jaguaribe. Ele falou: ‘Nem pensar! Não é nome de humorista. Vai ser Jaguar!”. E assim ficou.

Mudança profissional

No começo da vida adulta, quando saiu do exército, decidiu que iria viajar, e foi para o Amazonas por cerca de um ano. Ao voltar para o Sudeste, passou em um concurso da marinha mercante, onde tinha o sonho de se tornar comandante, “levar um monte de livros, ficar lendo, deixando uma mulher em cada porto”. Mas acabou se casando e prestou um concurso para o Banco do Brasil. Zerou a parte de datilografia, mas, pela média geral, foi aprovado. Ironicamente, acabou no setor de telegramas. Teve que aprender a bater a máquina.

Da experiência, destacava: “Nunca tive uma falta. Uma falta sequer! Isso foi fundamental na minha vida, me deu uma puta disciplina! As pessoas duvidavam: ‘O Jaguar? Tá bebendo, ele não vem! Não vai entregar a porra da matéria!’. E eu nunca deixei de entregar nada, assim como nunca faltei ao banco”.

Permaneceu no BB por cerca de 17 anos, pedindo demissão em 1974. Segundo ele porque, justamente na hora em que a redação do Pasquim ficava mais “animada”, ele precisava sair para o outro emprego.

Desde a década de 1950, passou por inúmeros veículos, como as revistas Manchete, Senhor, Civilização Brasileira e Revista da Semana, os jornais Tribuna da Imprensa, Última Hora, A Notícia e O Dia, além do histórico Pif-Paf, de Millôr Fernandes, e do já citado Pasquim. Também foi editor da Bundas, publicação lançada no fim dos anos 1990 com parte da turma pasquinesca.

O Pasquim

Um marco na carreira de Jaguar, assim como na de tantos outros cartunistas brasileiros, o semanário O Pasquim foi fundado em junho de 1969, durante um dos períodos mais difíceis da ditadura militar (1964-1985) – vale lembrar que o Ato Institucional Número 5 havia sido decretado por Costa e Silva no ano anterior.

“A fundação de O Pasquim logo depois do AI-5 foi uma coisa inteligentíssima, né? [Risos]. Um grupo de pessoas consideradas de um certo QI, esperou o AI-5 pra abrir um jornal pra falar mal do Governo! Foi uma ideia brilhante! [Risos] Deu tanto resultado que, seis meses depois, 80% da redação estava em cana”, ironizava.

O pontapé inicial foi dado ao lado de Sérgio Cabral, Claudius Carlos Prósperi e Tarso de Castro. Na equipe da publicação passaram ainda outros nomes históricos do jornalismo alternativo como Millôr Fernandes, Ziraldo, Henfil, Paulo Francis, Ivan Lessa e Sérgio Augusto. O nome do jornal foi sugestão do próprio Jaguar, uma referência ao termo italiano Paschino, um panfleto difamador.

“Nós fizemos o jornal porque estava todo mundo demitido e a gente precisava de um meio de ganhar dinheiro. Queríamos produzir um informativo de Ipanema, feito nos botecos, mas, pela própria natureza dos participantes, começamos a fazer aquele brincadeira toda”. Em seu auge, O Pasquim chegou a vender mais de 200 mil exemplares numa única edição. A maioria das páginas não surgia de reuniões de pauta formais, mas de conversas de bar.

Foi em sua época de Pasquim que acabou preso, no segundo semestre de 1970. À época, o jornal fez uma sátira com o quadro Independência Ou Morte, de Pedro Américo, na qual, em vez da famosa frase, Dom Pedro dizia: “Eu quero é mocotó!” [Referência à música de Erlon Chaves].

Na semana em que parte da redação foi para a prisão (ou ficou “gripada”, termo que usavam para falar sobre a situação por conta da censura), Jaguar tinha viajado para pescar em Arraial do Cabo. Na volta, foi aconselhado a se esconder. “Pra você ver como o Brasil é surrealista, eu fiquei na casa do sujeito que era um dos mais reacionários: [o apresentador] Flávio Cavalcanti. Ninguém iria procurar um subversivo na casa do Flávio Cavalcanti [Risos]”, lembrava à ABI.

Posteriormente, Paulo Francis, que estava preso, lhe ligou, pedindo para que se entregasse, “caso contrário, ninguém seria solto”. Foi junto a Sérgio Cabral, que também estava foragido, e se entregaram. Ao longo das décadas, Jaguar se acostumou a relatar de forma bem-humorada o período em que passou na cadeia, como os frequentes subornos aos guardas para que pudesse beber cachaça diariamente na cela. “O Ziraldo fica puto quando começo a contar essas histórias engraçadas, pois ele acha que elas estragam a nossa imagem pública. ‘Pô, você fica nos esculhambando, todo mundo fica rindo… Parece que foi uma brincadeira! Não era, eu sei disso”, ponderava. Mas o tempo de cadeia nos anos de chumbo era só um entre tantos outros assuntos dos quais Jaguar falava dando risada.

Ainda sobre a época da ditadura, relembrava a forma encontrada pelo Pasquim para tentar driblar a censura, que se intensificou em 1974: “O negócio ficou feio, pois tudo tinha que ser mandado pra Brasília. A gente colocava um monte de secretárias copiando Os Sertões, Rachel de Queiroz… Então, de cada 20 páginas, apenas três eram de O Pasquim. Só que eles [censores] tinham que ler aquela merda toda, entendeu? Censuravam Rachel, Fernando Sabino, Rubem Braga [RISOS]. Era uma guerrilha, a gente fazia isso muito bem. Mandávamos um volume de material que daria pra três edições, torcendo pra que, após os cortes, o que voltasse salvasse pelo menos uma”.

Mesmo com a tática, os atrasos começaram a se tornar as recentes, fazendo com que a publicação perdesse parte da sua atualidade. “Foi aí que começou a decadência. Fora aquela história de incêndios e explosão nas bancas”. O semanário continuaria sendo publicado até outubro de 1991, época em que o povo já votava diretamente para presidente, e as vendas estavam longe de serem as mesmas dos tempos áureos.

“A democracia é péssima para esse tipo de publicação. A gente esculhambava o Governo. E só a gente, né? A chamada ‘imprensa nanica’. Depois que todo mundo pode esculhambar o Governo, virou zona. A democracia é a pior coisa para um jornal de humor e de sátira, do ponto de vista econômico”, analisava Jaguar.

As polêmicas de Jaguar

“Dizem que sou mal-humorado, o que é uma mentira. É que eu prefiro ir contra a corrente”, dizia Jaguar ao Jornal do Brasil em fevereiro de 2004. A postura do cartunista lhe rendeu diversos momentos polêmicos ao longo da vida.

Num deles, em outubro de 1999, protestou contra a posse de Roberto Campos, ferrenho crítico da esquerda e do comunismo, como um dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ocuparia a cadeira de Número 21, que já havia sido de Dias Gomes). Em certa ocasião, havia dito que se Campos fosse realmente indicado, iria ao local para arremessar ovos podres. Segundo ele, não passava de blefe. Mas Arnaldo Niskier, então presidente da ABL, chamou-o de “covarde”, dizendo que não cumpriria com sua palavra. Foi aí que decidiu que teria que realizar o ato pra valer.

Fantasiado como Dom Pedro I, foi para a frente da Academia no dia da posse, mas muitas horas antes. Diante da presença de inúmeros seguranças e policiais, além da imprensa, acabou se amedrontando. No fim das contas, em vez de arremessar os ovos em direção a Campos, limitou-se a deixar três ovos cozidos na calçada. “É para que o novo imortal chegue à academia pisando em ovos, assim como todos os que votaram nele”, disse na ocasião, segundo o Diário do Grande ABC.

Em junho de 2006, Chico Alencar, então vereador pelo Rio de Janeiro, indicou Jaguar para receber a medalha Pedro Ernesto da Câmara Municipal. Após tê-la recebido, o cartunista ficou incomodado ao descobrir que o deputado Roberto Jefferson, à época envolvido em escândalos de corrupção, também havia recebido a honraria (por indicação de sua filha, Cristiane Brasil, outra vereadora da casa), resolveu devolvê-la. Diante de funcionários que não sabiam bem como proceder no caso inédito, acabou deixando o prêmio com a presidente da Câmara e foi embora.

Em abril de 2008, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça decidiu que Jaguar receberia uma indenização de mais de R$ 1 milhão e uma pensão mensal de R$ 4 mil, assim como Ziraldo, pelos prejuízos que sofreram com a perseguição política durante a ditadura militar (1964-1985). O valor rendeu críticas, e Jaguar chegou a se dizer decepcionado com a reação do público e mídia: “Não esperava levar tanta porrada”.

Já idoso, passou por alguns problemas de saúde. Em 2012, aos 80, revelou que sofria de cirrose e de câncer no fígado (carcinoma hepatocelular), precisando ser submetido a uma cirurgia. Depois de parte do tratamento, afirmou em entrevista à Folha de S. Paulo: “Eu não sei quanto eu [ainda] tenho de vida, mas é mais do que eu esperava.”

“O médico ficou perplexo comigo. ‘Quer dizer que não vou morrer dentro de 20 dias?’ Ele falou: ‘Não’. Falei: ‘Porra, mas que sacanagem! já bolei todo o esquema, vou ter que reformular tudo de novo, voltar à vida normal, fazer planos para o futuro e o cacete, mas que merda! [Risos]”, continuava, como sempre, dispondo de bom humor nas mais variadas situações.



Por:Estadão Conteúdo

Estadão

Recent Posts

Operário-PR vence o Paysandu de virada fora de casa e se reabilita na Série B

Mesmo jogando fora de casa e saindo atrás do placar, o Operário-PR venceu o Paysandu,…

10 minutos ago

Corinthians domina, vence o Vasco e encerra sequência negativa no Brasileirão

Antes de uma sequência importante na temporada, o Corinthians voltou a vencer um jogo do…

23 minutos ago

Santos, com Vojvoda como testemunha e sem Neymar, perde do Bahia e se afunda ainda na crise

Sem Neymar, suspenso, o Santos se afundou ainda mais em crise ao perder do Bahia…

41 minutos ago

Dino manda PF investigar repasses de R$ 694 milhões por emendas Pix

O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a Polícia Federal abra…

42 minutos ago

Frente fria chega com ventos de 120 km/h em SP; veja a previsão do tempo para a semana

Após poucos dias de sol e calor, o frio voltou a São Paulo. Uma nova…

48 minutos ago

cinzas espalhadas pelos bares que frequentou

O cartunista Jaguar morreu neste domingo, 24, aos 93 anos. Há 25 anos, quando tinha…

53 minutos ago

This website uses cookies.