Cessar-fogo entre Israel e Hamas já dá sinais preocupantes, um dia depois de acordo histórico


Na segunda-feira, 13, o frágil cessar-fogo em Gaza levou à libertação dos reféns israelenses e dos prisioneiros palestinos detidos por Israel. Foi o culminar de um processo longo e tortuoso – mas, no final das contas, pode ter sido a parte mais fácil.

Um dia depois da assinatura do acordo, no entanto, os dois lados começam a dar sinais preocupantes. Nesta terça, Israel atrasou a entrada de ajuda humanitária para Gaza e manteve a fronteira fechada, enquanto os terroristas do Hamas aumentaram sua presença em Gaza e demonstravam seu controle executando homens na rua.

Três oficiais israelenses disseram à Reuters que Israel decidiu restringir a ajuda à devastada Faixa de Gaza e adiar os planos de abrir a passagem de fronteira para o Egito pelo menos até quarta-feira, porque o Hamas estava muito lento para entregar os corpos dos reféns mortos. O grupo terrorista disse que localizar os corpos é difícil.

Enquanto isso, o Hamas rapidamente retomou as ruas das áreas urbanas de Gaza, após a retirada parcial das tropas israelenses na semana passada. Em um vídeo que circula na internet, terroristas do Hamas arrastaram sete homens com as mãos atadas para uma praça na Cidade de Gaza, forçaram-nos a ficar de joelhos e os executaram, enquanto dezenas de espectadores assistiam. Uma fonte do Hamas confirmou que o vídeo foi filmado na segunda-feira e que os combatentes do Hamas participaram das execuções. A Reuters conseguiu confirmar a localização.

Palestinos tentaram cruzar uma linha estabelecida para as suas tropas, prevista pelo plano de cessar-fogo mediado pelos Estados Unidos e que prevê a retirada gradual de Israel do território palestino. Segundo o Exército israelense, os suspeitos se aproximaram dos soldados de Israel, que abriram fogo após “tentativas de afastar os suspeitos” não serem obedecidas. Cinco pessoas morreram no incidente, afirmaram autoridades de saúde palestinas.

Apesar de ser um incidente menor, acende um sinal de alerta. Em uma entrevista na terça, 14, o porta-voz do grupo terrorista Hamas, Hazem Qassem, disse que os ataques constituíram “uma clara violação do cessar-fogo” por Israel, o que seria uma ameaça ao acordo. Ele também pediu os mediadores monitorassem a conduta de Israel e “impedissem de evadir seus compromissos de encerrar a guerra na Faixa de Gaza”.

Além disso, mediadores temem que o Hamas resista à intenção de se desarmar ou abandonar o poder em Gaza – duas exigências principais do acordo de cessar-fogo que aceitou há alguns dias. Ele afirmou em uma entrevista na emissora saudita Al Arabiya que a questão do desarmamento do Hamas é “complexa e delicada, mas solucionável dentro do quadro de uma abordagem nacional abrangente”. O porta-voz do grupo então enfatizou que “existem várias abordagens que podem garantir segurança e estabilidade sem comprometer o direito dos palestinos à autodefesa”.

Esse é o tipo de detalhe que analistas e mediadores temem que possa fazer o acordo ruir. Detalhes importantes do plano de paz podem permanecer indefinidos. Detalhes específicos precisarão ser negociados para manter o plano em andamento e evitar a retomada dos combates. O caminho para a paz duradoura, a estabilidade e a eventual reconstrução será longo e muito difícil.

“Os primeiros passos para a paz são sempre os mais difíceis”, disse o presidente Donald Trump ao lado de líderes estrangeiros no Egito na segunda-feira, durante uma cúpula sobre o futuro de Gaza. Ele saudou o acordo de cessar-fogo que negociou entre Israel e o Hamas como o fim da guerra em Gaza – e o início da reconstrução do território devastado.

E embora Trump tenha expressado otimismo de que a parte mais desafiadora havia acabado – “A reconstrução talvez seja a parte mais fácil. Acho que já fizemos grande parte da parte mais difícil, porque o resto se encaixa” – outros estavam mais cautelosos sobre as complexidades que estão por vir.

“A paz tem que começar em algum lugar”, disse Mona Yacoubian, diretora do Programa do Oriente Médio do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. Ela chamou isso de um momento importante e de “euforia”. Mas, alertou Yacoubian, “infelizmente, acho que há vários pontos potenciais de falha daqui para frente”.

Muito a ser resolvido

Conforme apresentado publicamente, o plano está repleto de perguntas sem resposta.

Não está claro como e quando o Hamas irá se desarmar, nem para onde irão suas armas, assim como os planos para a retirada de Israel de Gaza. Uma nova força de segurança será estabelecida para Gaza, composta por tropas de outras nações, mas não se sabe quais países enviarão forças, como elas serão utilizadas e o que acontecerá se encontrarem resistência. Também não está claro quem fará parte de um conselho governamental temporário para Gaza, onde ele ficará localizado e como a população reagirá.

Para resolver esses detalhes e evitar que os combates retornem, os Estados Unidos e outras nações que pressionaram para chegar ao cessar-fogo devem continuar a exercer pressão e dedicar atenção, dizem os especialistas.

Tudo isso se soma a um legado de conflitos, profunda desconfiança entre as partes e uma possibilidade vaga e condicional de um eventual Estado palestino – uma questão que tem sido um ponto de discórdia central há décadas. “Quando você percebe o quanto ainda há a ser feito para que a pausa atual seja mantida, é aí que tudo se torna muito assustador”, disse Yacoubian.

Desde o início da guerra com os ataques terroristas do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023, dois outros cessar-fogos vieram e se foram sem nenhum progresso além de pausas temporárias nos combates e trocas limitadas de reféns e prisioneiros. Com o Hamas exigindo o fim permanente dos combates e Israel exigindo a libertação de todos os reféns, as negociações sobre os acordos pós-guerra nunca saíram do papel. Essas posições começaram a mudar após a reeleição de Trump, quando ele aproveitou seu poder e suas relações – tanto com Israel quanto com mediadores árabes com influência sobre o Hamas – para levar as coisas adiante.

As razões para o ceticismo são múltiplas

Apesar do entusiasmo com este último acordo, há razões para o ceticismo, entre as quais se destaca o fato de que as tentativas dos EUA de pôr fim ao conflito israelo-palestino fracassaram durante décadas.

Começando com a Conferência de Madri de 1991 e passando por vários momentos – entre eles os acordos históricos de Oslo em 1993 e 1995, que criaram a Autoridade Palestina – todos os esforços para reiniciar o processo até 2014 fracassaram.

Lucy Kurtzer-Ellenbogen, pesquisadora sênior do Instituto do Oriente Médio, disse que o atual cessar-fogo é “uma pausa bem-vinda e significativa, mas frágil”. Agora, disse ela, a questão é “se ele entrará em colapso total ou servirá apenas como uma chance para ambos os lados se reorganizarem, em vez de uma plataforma de lançamento para o progresso nessas questões. Isso vai depender do presidente Trump e dos outros atores com quem ele está coordenando para permanecerem firmes”.

Na proposta de paz mediada pelo governo Trump, ainda não está claro até que ponto foram alcançados acordos sobre dois dos maiores pontos de discórdia: a extensão da retirada de Israel e a extensão da retirada do Hamas do poder. Israel continua controlando cerca de metade de Gaza.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, teve o cuidado de dizer na segunda-feira que está “comprometido” com o plano de paz de Trump, mas não declarou o fim da guerra. Nos últimos dois anos, ele prometeu repetidamente alcançar a “vitória total” sobre o Hamas. O Hamas, embora enfraquecido após dois anos de guerra, está longe de estar fora do governo e totalmente desarmado, como Netanyahu desejava.

Também não está claro quem supervisionará tudo isso no chamado “Conselho da Paz”, que Trump disse que presidirá. Apesar do plano de Trump anunciar que o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair ajudaria a liderar o conselho, o presidente também deixou isso em aberto no domingo, 12. Os palestinos expressaram descontentamento com o possível envolvimento de Blair.

“Gosto do Tony. Sempre gostei do Tony, mas quero ter certeza de que ele é uma escolha aceitável para todos”, disse Trump a repórteres enquanto voava para Israel.

O que resta para limpar é a devastação

A resolução de todos esses detalhes ocorre em um contexto em que a Faixa de Gaza precisa de “reabilitação em massa”, disse Kurtzer-Ellenbogen, e uma população que sofreu traumas físicos e psicológicos incessantes.

Dezenas de milhares de palestinos foram mortos. Mais de 90% da população de Gaza, de mais de 2 milhões de pessoas, está deslocada. O sistema médico está destruído. Casas e edifícios estão arrasados. As terras agrícolas foram devastadas. A fome é generalizada.

Essas necessidades urgentes precisarão ser atendidas ao mesmo tempo em que se estabelecem os sistemas transitórios de segurança e governo. “Não há realmente nenhum luxo de sequenciamento aqui”, disse Kurtzer-Ellenbogen. “Tudo tem que acontecer ao mesmo tempo.”

O Banco Mundial, as Nações Unidas e a União Europeia estimaram no início deste ano que o custo da reconstrução de Gaza seria de cerca de US$ 70 bilhões. Espera-se que os ricos Estados árabes ajudem com esse custo, mas essa adesão deverá ser acompanhada de garantias de que haverá um caminho para a independência palestina e que não haverá um retorno aos combates.

O maior ponto de discórdia é um Estado palestino, que o plano de Trump apresenta como uma possibilidade somente após um longo período de transição em Gaza e um processo de reforma da Autoridade Palestina. É algo a que Netanyahu e seus parceiros se opõem.

Yacoubian disse que o acordo firmado pelo governo Trump parecia “propositalmente muito vago” sobre a questão da criação de um Estado palestino. Segundo ela, o acordo parecia ter sido elaborado para “encontrar um equilíbrio entre o mínimo que os palestinos e seus apoiadores árabes aceitariam”, sem mencionar uma “solução de dois Estados”, que parece continuar sendo inviável para Israel.

Na volta aos EUA na noite de segunda-feira, Trump deixou de lado as perguntas sobre um Estado palestino independente e disse aos repórteres que isso era algo separado de seu plano para reconstruir Gaza.

“Muitas pessoas gostam da solução de um único Estado. Algumas pessoas gostam da solução de dois Estados. Teremos que ver”, disse Trump. “Em algum momento, decidirei o que acho certo, mas estarei em coordenação com outros Estados e outros países”.

Robert Wood, vice-embaixador dos Estados Unidos na ONU durante o governo Biden, vetou várias resoluções do Conselho de Segurança da ONU que pediam um cessar-fogo imediato em Gaza. Ele disse que a próxima fase será difícil e “exigirá uma quantidade enorme de trabalho”.

“O governo precisa permanecer engajado, especialmente nos níveis mais altos, para que isso tenha chance de funcionar”, disse Wood. “A guerra ainda não acabou”.

*Repórter da Associated Press.



Por: Estadão Conteúdo

Estadão

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